"A educação pelo trabalho é mais do que uma educação comum pelo trabalho manual, mais do que uma pré-aprendizagem prematura; baseada na tradição, mas prudentemente impregnada pela ciência e pela mecânica contemporâneas, ela é o ponto de partida de uma cultura cujo centro será o trabalho."

Célestin Freinet

(A Educação do Trabalho, Ed. Martins Fontes, 1998, pg. 315)

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O mestre e o aprendiz

     Durante todo o verão, o rebanho de ovelhas ficara na montanha, confiado à guarda do pastor, que de modo algum parecia sobrecarregado com a responsabilidade dos seus mil animais.
    Por Saint-Michel, voltavam para a aldeia. Cada um de nós "apartava" o seu pequeno rebanho, e trinta jovens pastores partiam, em seguida, através dos campos de restolho, ainda ricos em erva verdejante, para passarem pela aprendizagem de condutores de carneiros.
    Tinham-nos ensinado as leis e as regras que aplicávamos ao pé da letra, como o guarda executa as ordens na estrada.
    - Cuidado para as ovelhas não escaparem e estragarem os feijões!
    - Não deixem os cordeiros afastarem-se do rebanho, senão vocês poderão perdê-los!
    - Cuidado com as moitas cheias de cobras e com a luzerna que incha os animais!
    - Não levem os animais para o lado das rochas, pois eles poderiam ficar entalados!
    Outras tantas preocupações obsessivas que não nos deixavam em paz, e nem aos nossos animais: daqui!... dali!... Um pouco mais e teríamos cercado ovelhas e carneiros para não os perder de vista, preferindo trazer-lhes capim e galhos... se eles aceitassem.
    Trabalho de aprendiz que ainda não compreendeu nada do caráter e do comportamento dos seus animais.
    Quanto ao pastor, partia calmamente atrás do seu rebanho. Uma palavra, um grito, lançados oportunamente, e os animais seguiam na direção que o pastor sabia de antemão onde ia dar. Vão passar lá embaixo!... Daqui a pouco vamos encontrá-los acima das barreiras. Esta noite descerão pelas encostas!...
    O pastor dormia, o cão dormia; os animais comiam até se fartar, livremente. Trabalho de mestre que conduz o seu rebanho com uma ciência e uma filosofia cujas linhas eficientes deveríamos procurar, para darmos à nossa pedagogia a quietude e a humanidade próprias das obras conscientes.

C. Freinet, Pedagogia do Bom Senso, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1996, pg. 07. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O bom jardineiro, ou o ciclo da educação

     A educação não é uma fórmula de escola, mas sim uma obra de vida.
    Há jardineiros ditos modernos ou científicos que se gabam de obter uma boa colheta, quaisquer que sejam as condições do solo, do clima, da luz ou do esterco. Mas que abundância de enxofre e arseniatos, de inseticidas e caldas! Se isso não for suficiente, escondem-se os cachos de uvas em saquinhos protetores e colhe-se a pera ainda verde, para guardá-la sobre uma camada de algodão onde amadurecerá à vontade.
    O fruto está salvo, e tem bom valor de mercado. Mas está tão impregnado de tóxicos, que se torna veneno para quem o consome. E a árvore que o deu, esgotada e ferida antes do tempo, seca antes mesmo de ter ousado lançar para o céu os seus braços audaciosos.
    É já na semente, ou no broto, que o jardineiro prudente cuida e prepara o fruto que virá. Se esse fruto é doente, é porque a própria árvore que o gerou estava esferma e degenerada. Não é do fruto que se deve tratar, mas da vida que o produziu. O fruto será o que fizerem dele o solo, a raiz, o ar e a folha. É deles que devemos cuidar, se quisermos enriquecer e garantir a colheita.
    Se um dia os homens souberem raciocinar sobre a formação dos seus filhos como o bom jardineiro raciocina sobre a riqueza do seu pomar, deixarão de seguir os eruditos que, nos seus antros, produzem frutos envenenados que matam ao mesmo tempo quem os produziu e quem os come. Restabelecerão valorosamente o verdadeiro ciclo da educação: escolha da semente, cuidado especial do meio em que o indivíduo mergulhará para sempre as suas raízes poderosas, assimilação pelo arbusto da riqueza desse meio.
    A cultura humana será, então, a flor esplêndida, promessa segura do fruto generoso que amadurecerá amanhã.

C. Freinet, Pedagogia do Bom Senso, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1996, pg. 07. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Pedagogia Freinet na 1ª Infância - Vamos repensar o Berçário?


Encontros do POLO FREINET
DA CIDADE SÃO PAULO
REPEF- Rede de Educadores e Pesquisadores da
Pedagogia Freinet  
                                                 
TEMA: Pedagogia Freinet  na 1ª Infância:Vamos repensar  o Berçário?
Dia 02 de novembro               -         Das 8:00 as 15:00 horas


Justificativa:
No universo da Educação Infantil com seus atores, crianças, educadores  e famílias, é premente o  desafio  de repensar  os tempos , os usos dos espaços e os currículos da Educação Infantil, visando a qualidade educacional do atendimento a Infância.

Objetivo:
Promover um encontro com Educadores da Infância, com o intuito de construir um espaço de discussão, trocas de conhecimentos e experiências acerca do cotidiano da educação infantil, com ênfase no trabalho especifico do berçário.

Conteúdo:
  • Fundamentos e Concepções da Educação Infantil
  • Contribuições da Pedagogia Freinet
  • Protagonismo de bebês:
- Brinquedos interativos
- Roda Musical com bebês
- Cantinhos no Berçário
- Ateliês de arte com bebês

Metodologia:
O encontro terá o formato de ateliê, que abordará o  tema em facetas   teórico- práticas.
_________________________________________________________________________________
Local:   Creche Maria de Belém
Endereço:     Rua Monteiro Caminhoá nº 83  ( Em frente a Radial Leste, atrás da  passarela do  Metrô Belém)

Será servido um brunch
Os participantes terão direito a certificado

Investimento:
R$ 30 reais - Podendo ser pago no dia do encontro
(Captação de Recursos de 50% para a Entidade)

Inscrições: e-mail: fecunda@gmail.com
Telefone da Creche: 2796-7526 com Cristiane

Vagas limitadas!
Encontros do POLO FREINET
DA CIDADE SÃO PAULO
REPEF- Rede de Educadores e Pesquisadores da
Pedagogia Freinet  
                                              

TEMA:Pedagogia Freinet  na 1ª Infância:
Vamos repensar  o Berçário?
Dia 02 de novembro               -         Das 8:00 as 15:00 horas


FICHA DE INSCRIÇÃO
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Cargo/função:

Instituição:

Fone para contato

E-mail:


·    Envie a ficha preenchida para o email fecunda@gmail.com


Apoio:
Centro Social Nossas senhora do Bom Parto

Grupo de Apoio Pastoral Pedagógico – GAPP

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O PERIGO DOS FAZEDORES DE NÓS

    O senhor está me perguntando - disse o velho pastor - se é um trabalho difícil conduzir o rebanho, de Saint-Jean até Saint-Michel, sem perdas nem danos, e garantir gordura boa e pêlo bonito aos animais?
    Não é mais difícil do que manobrar a foice num campo de capim fino, ou carregar sacos de alfazema na albarda dos burros mansos. Só que os velhos pastores guardam os verdadeiros segredos dos seus êxitos e das suas conquistas, e nos orientam para caminhos acessórios, persuadindo-nos de que é necessário conhecer orações e magias, quando apenas o bom senso lhes bastou. Quanto aos carregadores de burros, acrescentam maliciosamente nós supérfluos às cordas da albarda, para nos fazerem crer que há uma ciência dos nós de que são eles os grandes mestres.
    É certo que em qualquer ofício há uma técnica a ser dominada. E é dominada não com truques ou sortilégios, mas segundo leis simples e de bom senso, pois nunca há contradição, entre ciência e técnica, por um lado, e bom senso e simplicidade, por outro. O investigador de gênio é sempre aquele que caminha na direção da simplicidade e da vida.
    E essas leis, todo mundo as compreenderia se, apesar dos traçadores de pistas falsas e dos fazedores de nós, se conseguisse redescobrí-las e colocá-las, como sinais luminosos, nos cruzamentos dos grandes caminhos do conhecimento.
    O que nos atrapalha e nos atrasa nesta investigação científica da verdade não é a dificuldade dos problemas a serem tratados, mas sim a obstinação diabólica com que, desde tenra idade, somos desviados do bom senso, alimentados de Ersatz¹, com que nos estragam o espírito com definições ou invocações, nos deformam o entendimento e a inteligência, levando-nos por falsos caminhos e ensinando-nos a fazer ou a desfazer nós!...
    A verdade é que os nossos mestres e os seus servidores nunca têm interesse em que nós descubramos as leis claras da vida.
    Vivem da obscuridade e do erro... e é sempre apesar deles e contra eles que realizamos a nossa cultura.
    Não cabe a mim dizer-lhe como você poderá descobrir e ensinar essas leis naturais e universais que lhe abrirão depressa, e definitivamente, as leis do Conhecimento e da Humanidade. O que eu sei é que elas existem e que aqueles que as possuem têm todos o mesmo ar de sabedoria e de segurança, de calma e de simplicidade, e de generosidade também, que lemos no rosto dos velhos pastores, nas mãos intuitivas dos curandeiros, nos olhos profundos do sábio, nas decisões e na ação dos militantes devotados, nas palavras dos sensatos... e na espantosa confiança das crianças na aurora da vida.

¹ palavra alemã que significa sucedâneo de qualidade inferior. (N. do T.)
C. Freinet, Pedagogia do Bom Senso, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1996, pg. 05.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

OS CAMINHOS DA VERDADE


    Como eram deliciosos os fins de março da nossa infância, quando os amentilhos floriam nos ramos vermelhos dos vimeiros e as primaveras e violetas nasciam na terra úmida que a neve mal havia abandonado!
    E o barulho que fazíamos, nós, as nossas ovelhas e os nossos cachorros, quando levávamos, para saltar pelos prados novos, nossos animais embriagados de sol e de liberdade!
    Um bom pastor, pensávamos nós, avalia-se pela nitidez dos seus gritos, pelos latidos dos cães e pela decisão com que impõe uma ordem e uma disciplina de que ele é o grande ordenador. É verdade que sentíamos um prazer malicioso em fazer sentir essa autoridade; era uma espécie de inveja inconsciente que nos levava a contrariar o apetite natural dos nossos cordeiros... Ah! então você queria comer brotos macios... toma uma chibatada, para você aprender a se emancipar!
    No entanto, eu fazia uma exceção para a minha querida Negrinha, com os seus dois cabritinhos de brincos, de que eu gostava tanto e que me pagavam na mesma moeda. A eles, eu não tinha de comandar; seguiam-me ou dançavam a sua alegria de viver, numa farândola deliciosa. E se o cachorro tocasse neles, com que emoção eu os defenderia! Com que atenção baixava para eles os talos frágeis que eles mordiscavam, e colhia, nas moitas, os brotos macios que eles vinham comer da minha mão!
    Ficava orgulhoso quando eles se saciavam e me gabava de nunca ter levantado a voz, pois ficavam sempre atentos aos meus gestos e aos meus cuidados.
    Duas atitudes! Duas pedagogias!
    Mas a Escola ri-se da humilde experiência dos pastores! Ela tem os seus imponentes e seculares caminhos, que escritores, sábios, administradores eminentes disseram ser caminhos da verdade: Nada de fraqueza afetiva! Manter a lei! Habituar os alunos a obedecer, mesmo, e sobretudo, quando a ordem dada contrariar suas tendências e desejos. É assim que se formam - se for preciso com as chibatadas e os cães - as personalidades fortes e as almas bem temperadas.
    E se fossem caminhos de ilusão e de erro? Se qualquer velho pastor nos provasse, com a sua experiência decisiva, que nos estamos esgotando em vão numa luta desigual contra a natureza e a vida; se nos persuadíssemos, algum dia, da vaidade orgulhosa desta autoridade formal - material, intelectual e moral -, que o manejo hábil e impiedoso do chicote nos dá! Se reaprendêssemos a acariciar, amar e servir as crianças de caracóis loiros, a segurá-las pela mão nas passagens difíceis, a baixar para elas os galhos que não conseguem alcançar; a nos alegrar ao vê-las satisfeitas, ao fim do dia, com um alimento livremente colhido nas fontes generosas que teríamos feito brotar; se soubéssemos responder aos inquietos apelos dos alunos em dificuldade e nos acalmar com o espetáculo dos saltos de satisfação de seres que sobem até os cumes da cultura, por caminhos que não são forçosamente calvários, mas que são sempre caminhos de vida!
    Se soubéssemos ajudar as nossas ciranças a tornar-se homens!
C. Freinet, Pedagogia do Bom Senso, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1996, pg. 04. 

quinta-feira, 27 de junho de 2013

PEDAGOGIA DO BOM SENSO

Este é o primeiro texto do livro Pedagogia do Bom Senso, de Célestin Freinet.
Pedagogia do Bom Senso
    "Você vai procurar bem longe os elementos de base da sua pedagogia. Para isso são necessárias considerações intelectuais e vocábulos herméticos, cujo segredo só os universitários possuem. E é a tradição referir-se a Rabelais, Montaigne e J.J. Rousseau, para só falar dos pensadores cuja reputação é, há muito, inatacável.
    Mas você tem certeza de que a maior parte dessas ideias que os intelectuais julgam ter descoberto não correm desde sempre entre o povo, e de que não foi o erro escolástico que lhes minimizou e deformou a essência, para monopolizá-la e subjugá-la?
    Veja então como, entre o povo, são tratados e educados os pequenos animais: você encontrará aí a origem dos grandes princípios educativos aos quais estamos voltando lentamente, quase que de má vontade...
    Nada de aprendizagem prematura, dirá o caçador. O cão novo demais se cansa e se desencoraja. As suas reações e o seu faro correm o risco de ficar perturbados para sempre.
    Está certo que o cão tem que caçar para se formar, mas não demais ao sabor do seu capricho. A caça é uma coisa séria, para a qual o cão novo será treinado em companhia de cães excelentes, tendo apenas que seguir o exemplo deles.
    Apetite e motivação: se você encher o seu cão de petiscos que não lhe são específicos, se ficar gordo e cevado, por que você quer que ele cace?
    E quando a lebre for apanhada, não basta pô-la logo na bolsa de caça. Há toda uma arte do caçador para satisfazer o cão, deixando-o mordiscar o animal morto, mas limitando sua satisfação para fazê-lo compreender que não deve ser o único a aproveitar da pechincha.
    Nunca se deve bater nos animais novos. Deixe-os ou faça com que sejam castigados por outra pessoa, se necesário; mas nunca será pelo medo que você alcançará seus fins.
    E os apicultores lhe dirão: nada de gestos bruscos que despertam as reações de defesa dos animais com que você lida - confiança, bondade, ajuda e decisão.
    E eu lhe digo que, se fôssemos procurar assum, na tradição popular, as práticas milenares do comportamento dos homens na educação dos animais, estaríamos em condições de escrever o mais simples e o mais seguro de todos os tratados de pedagogia."
C. Freinet, Pedagogia do Bom Senso, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1996, pg. 03. 


Leia mais: http://www.redefreinet.com.br/pedagogia-do-bom-senso/

Carta a um amigo do Brasil

Esta carta foi enviada pela Érica para a nossa lista de discussões.
Vale a pena ler.

Carta a um amigo do Brasil

Caro amigo,

"Como se chega à Pedagogia Freinet?" você me pergunta. Ainda que eu considere meu percurso pessoal não exemplar, quero tentar dizer-lhe o que me levou a procurar e, depois, a executar (mas você verá que esses dois momentos são, de fato, confundidos, uma vez que alimentados um pelo outro) um outro modo de ser, uma outra maneira de viver com meus alunos.
Mas espero, antes de mais nada, deixar bem claro que cada um, em função do que é, do que vive, das condições afetivas, técnicas, com as quais trabalha, age de uma maneira inevitavelmente pessoal, age como crê, como sente, movido somente por uma vontade de estar, ao nível da ação, de acordo com a teoria.
Espero também dizer que, antes de tudo, a Pedagogia Freinet seja, principalmente, uma maneira de ser mais do que um modo de fazer, a prática pedagógica provindo naturalmente de uma reflexão sobre o sentido da vida, sobre o sentido do homem.
Antes de conhecer as idéias de Freinet, ensinei como qualquer professor na França; quero dizer, sem uma formação pedagógica muito específica, os diplomas abrindo as portas ao ensino, sem que, naquela época (mas a melhora não me parece ainda suficiente e consistente), a preparação fosse, de fato, objeto de uma reflexão aprofundada.
Ensinei, então, como me haviam "mostrado", com a vontade, pois essa profissão me apaixonava, de ser eficaz, de ensinar a meus alunos o que me exigiam que eles aprendessem e sem me preocupar com o que eles pudessem ser em profundidade. Julgava de maneira peremptória o ser pensante que tinha diante de mim e não conhecia quase nada do ser sensível.
Fui, portanto, por vários anos, alguém que distribuía saber a inteligências que, quisessem ou não recebê-lo (pudessem, ou não)... isso não era problema meu. Eu também me havia submetido a essa forma de ensino...
Mas, quando fui encarregado de ensinar desenho, me dei conta rapidamente da falta de realidade daquilo que fazia e, naturalmente, da falta de entusiasmo de meus alunos por uma "disciplina " que eu amava, mas que não considerava como um meio de expressão, ou melhor, que não sabia utilizar como tal. Ensinava meus alunos a realizar aquilo que eu queria que soubessem fazer, sem pensar que poderiam, graças à sua própria iniciativa, dar uma dimensão diferente a esta aprendizagem. Inculcava-lhes uma técnica que não passava de treino, de reprodução, de cópia, etc... Jamais, na realidade, se apresentava como uma verdadeira criação, motivada por um desejo profundo de dizer alguma coisa.
Esta incoerência me pareceu logo evidente e minhas aulas de desenho tomaram, então, um outro rumo. Pouco a pouco, pois é preciso convencer-se de que isto é muito importante, organizei em meu trabalho momentos durante os quais cada um usufruía do prazer de "criar" segundo o seu próprio desejo, utilizando de início as técnicas que havíamos estudado juntos e, depois, ficando livre de qualquer linha diretiva imposta por mim. Mesmo assim, quando analisava os resultados, os trabalhos acabados, eu os considerava criações de cada um, mas não sabia ainda ligá-los à vida própria de cada indivíduo. É  bem verdade que eu era o instigador e que o ritmo imposto por mim e o horário não permitiam muita autonomia. Todos esses desenhos, esses trabalhos, eram para mim peças soltas, objetos distintos Não reconhecia neles momentos essenciais dos seres nem  o fato de poderem estar contidos num clima global de expressão livre... Tudo isto programado por mim deixava-me longe da expressão livre, tal como a concebo hoje.
Entretanto, esta primeira reflexão já me havia emocionado (devo dizer a mesma coisa dos contatos "diferentes" com meus alunos), e, se bem que meu modo de ensinar o francês não houvesse mudado, minha atitude, minhas relações com os alunos começaram a evoluir, rumo a uma maior flexibilidade nos julgamentos que eu costumava fazer, rumo a uma maior escuta também. Tive consciência de que não tinha mais, frente a mim, receptores dóceis, mas seres que lançavam um eco, que vibravam. No plano pessoal tinha desejo de criar, mas, me encontrava ainda nos balbucios e fazia uns rabiscos. (Jamais mostrei minhas primeiras tentativas a ninguém, tão pouco seguro de mim eu eral).
Não me lembro de ter tido, a esta época, trocas sobre pedagogia com meus outros colega. A prática pessoal não era então um ponto a ser abordado, e só se valorizavam o êxito escolar e a autoridade pessoal. Nenhuma inovação era, a priori, recusada (mas não era muito encorajada, sobretudo em se tratando de um principiante!). Estávamos, meus colegas e eu, dentro de uma máquina que nos parecia bem montada e que deveria continuar avançando, sem gerar preocupações com as coisas em profundidade: as discussões entre colegas jamais abordavam a pedagogia; cada um fazia o seu "trabalho" em classe, receando as visitas do supervisor, queixando-se dos alunos, contando os episódios mais felizes ou mais engraçados das aulas, e ficava tudo por aí. Nunca havia lugar para análises pessoais: eu tinha direito, apesar disso, por ser jovem e iniciante aos conselhos freqüentes do diretor, professor antigo, que me propunha o seu modo de trabalhar, eficaz..
Eu ensinava como me haviam ensinado e, com muitos anos de distância, reproduzia, afinal, o mesmo modelo, a mesma maneira de ser, o mesmo sistema de relações. Era uma certeza de estabilidade das instituições! Eu estava seguro de mim e não punha à prova, de maneira alguma, o meu ensino, já que era o mesmo que praticavam à minha volta! Nunca havia ouvido falar de Freinet, que, àquela época, ainda vivia, e de toda uma organização que, havia mais de quarenta anos, lutava para que as pessoas se interessassem pelas idéias que ele propunha.Não tinha também, devo dizer, curiosidade pedagógica e lia apenas para meu prazer, para minha “cultura pessoal", como se diz. Nunca tive a idéia de procurar ler livros muito sérios ou muito tediosos, como pensava que se definiam as obras que tratavam de Pedagogia! E, no entanto, pouco tempo depois.. que prazer ao ler Freinet, Piaget, Illich! ...
Foi necessária uma mudança de cargo, para que tudo balançasse. Após seis anos desse ensino "tradicional " (este termo é utilizado aqui sem intenção pejorativa), mudei de departamento e fui nomeado para um outro estabelecimento, em tudo idêntico àquele que deixava, ou, pelo menos, era assim que pensava (a visão exterior das coisas induz facilmente ao erro!). Cheguei, portanto, com minhas idéias, minha prática e confiaram-me novas turmas, novos alunos. Recomecei, pois, a ensinar francês, história, geografia e desenho como no passado, sem problemas. Até o dia em que senti (isso algumas semanas após o início das aulas) que alguma coisa não ia bem entre meus alunos e eu. Longe de mim, certamente, a ideia de pensar que eu ia mal, que devia refletir sobre o que fazia, que devia modificar minha atitude. Não. (Embora...) Tudo o que acontecia vinha desses novos alunos, diferentes, nos quais eu via todos os defeitos possíveis. Sustentava minha atitude autoritária, sempre procurando meios de melhor fazê-los engolir o que eu tinha a dizer, o que eu devia ensinar-lhes. É num momento como este que se começa a ler revistas pedagógicas, à procura de receitas... pois, ao final das contas, não me sentia lá muito à vontade... Nada mais dava certo, as aulas não eram mais agradáveis, reinava uma surda hostilidade. Alguns de meus alunos, aqueles que eu não havia conseguido intimidar demais com a secura dos meus contatos, haviam-me sussurrado que eles não estavam habituados a trabalhar como eu lhes propunha, que antes (com o atual diretor) eles trabalhavam "de outra forma". No início, não quis saber de nada; mas rapidamente foi necessário render-me à evidência: eu aborrecia meus alunos e aborrecia-me também. Não se pode passar a vida assim (enfim, creio que a atitude atual de certos colegas meus provava-me o contrário), aborrecendo-se e aborrecendo as pessoas, sobretudo neste campo!
Tive, pois, um primeiro contato com o diretor, professor, no ano anterior, dos meus alunos e... foi graças a ele, graças a eles também, que eu comecei realmente a refletir. São necessários na existência, às vezes, encontros como esse que, de um só golpe, nos abre o espírito.
Ele havia praticado com eles a Pedagogia Freinet, desse Freinet que acabava de morrer, cuja morte não havia sido para mim mais que uma notícia de jornal, ainda que para meu amigo Pierre ela fosse muito mais do que isso (Eu o compreenderia mais tarde!).
E, dessa forma, pus o pé no estribo, como se diz, escutando, questionando, seguro que estava de poder contar com ele, com sua escuta atenta e sobretudo sua ajuda preciosa. Pois isso agora me instigava! Mas não se passa, de um dia para o outro, de uma atitude autoritária a uma outra que acolhe e ajuda. Ninguém se transforma, de um dia para outro, naquele que escuta, quando era sempre ele quem falava; naquele que acolhe, quando era sempre ele quem decidia; naquele que reparte, quando era sempre quem julgava!
Li muito, escutei e, pouco a pouco, sem “soltar as duas mãos ao mesmo tempo”, introduzi em minha prática pedagógica momentos durante os quais meus alunos tomavam a atitude de se organizar , de criar, segundo sua vontade. Nao eram senão "momentos" num percurso escolar, "pontilhados", que permitiam a meus alunos respirarem, e a mim, descobrir outros aspectos de sua personalidade.
Sentia que esta atitude convinha mais ao que eu era e, uma vez que me sabia ajudado por colegas prontos a me apoiar (isso, malgrado todas as dificuldades), apressei-me em rever tudo o que até aquele momento havia considerado como imutável; meu papel de "magister".
Meus alunos ajudaram-me bastante e meus filhos também. Comecei a pensar em ser educador e não, apenas, em ensinar. Seguindo os conselhos de Pierre Quéromain (o diretor do colégio), agi com prudência, apesar do entusiasmo que tomava conta de mim, e, apesar de tudo, cometi muitos erros por falta de jeito. Pois é, sem dúvida, extraordinário este entusiasmo, quando a gente se vê colocado diante de uma outra realidade, realidade na qual os alunos aparecem como seres humanos completos, quando a gente compreende que se deve levar em conta suas esperanças e suas fraquezas.
É por demais importante falar nesse momento do mestre que, questionando sempre sua realidade, deve, ele também, fazer seu próprio tatear. Portanto, vejo hoje que vivi sempre seguindo idéias de outros, até o dia em que tomei o compromisso de encontrar essa gente chamada "Freinet", durante um estágio de que participei, no mesmo ano, em Chambéry, em 1968. Lá encontrei pessoas normais, as quais considerei, à primeira vista, formidáveis,  simplesmente extraordinárias porque não procediam como as que habitualmente encontrava; elas "respiravam" de outra formal. Sabiam dizer do que viviam com tanto calor, que era contagioso; e com tanta simplicidade também! Aprendi com elas muita modéstia. Aprendi com elas a ausência de julgamento peremptório. Questionei muito. Estava tomado pelo "vírus".
No ano seguinte recomecei meu "ano escolar", colorindo-o ainda mais de tudo o que havia vivido, seguro de uma ajuda, tanto a nível do meu colégio, como a nível departamental e nacional, onde sabia encontrar, quando tinha necessidade, uma ajuda eficaz, livre de dogmatismo, livre desse poder que se liga à regulamentação oficial. E isso é, creio eu, o que importa, quando se começa. Deve-se poder encontrar, e saber que se pode encontrar, perto da gente (quando se está longe, e é o mais comum, escreve-se), pessoas que, amigavelmente, saberão receber o que a gente faz, saberão escutar a gente e dizer: "Bem, veja o que você faz e que não está dando certo. Não julgo que isso seja "mau", mas, você já pensou em... eu faço isto... tente e você me dirá...". De qualquer modo creio que, se se toma em relação às crianças que nos foram confiadas uma atitude de acolhimento, de ajuda, de escuta, de exigência também, já se está no "bom caminho", se assim se pode dizer. E cada um deve encontrar as soluções que lhe são possíveis, em função do que se vive. Mas, a ajuda do companheiro faz um bem imenso quando as coisas não estão dando certo.
Não me cansarei de dizer o quanto é importante este companheirismo entre os seres, que exclui o julgamento, que é tanto escuta quanto colaboração, tanto aceitação quanto proposta. E isto nada mais é que a "parte do mestre", nos grupos Freinet, diante daqueles que começam; como em sala o professor tem sua parte frente ao tateamento de seus alunos. E eu discuti, e escrevi numerosas cartas, para as quais sempre obtive resposta; e segui outros estágios, encontrei outras pessoas a quem sempre perguntei muito e que jamais recusaram uma resposta.
Um dia foi minha vez de dizer o que vivia, o que tentava, e foi assim que assumi um papel de "animador", tanto quanto, aliás, continuo sempre. sendo "animado" ainda, mesmo hoje, quando poderia dizer: "Veja, tenho tantos anos de reflexões e de pesquisas atrás de mim, sei das coisas, portanto (Como um velho combatente!)". Não! Continuo à escuta de meus camaradas, dos quais preciso e que sabem oferecer-me ainda muito e sempre.
Isto é um princípio do nosso movimento, Instituto Cooperativo da Escola Moderna -ICEM -, no qual não há mestres e sim camaradas que trabalham no mesmo sentido para que tudo evolua. E mesmo, e sobretudo, junto a "estagiários" que chegam às minhas turmas (pois desde que se tenha um pouco de experiência, de "bagagem", as instâncias acadêmicas sabem muito bem utilizar-se da gente e, portanto, confiam na gente com vistas à formação pedagógica de jovens mestres), portanto, dizia, mesmo junto a meus estagiários aprendo muito, pois eles sempre me trazem alguma coisa, pela reflexão que me impõem, pelo olhar crítico que lançam sobre o que faço e pelas discussões que nos animam.
Sei que não terminei meu tateamento (felizmente), que todas as minhas dúvidas com relação a mim mesmo, com relação à vida, não estão encerradas! E quando, no ano passado, estive no Centro Educacional de Niterói -CEN -, aí ainda descobri muitas coisas, a experiência me ajudou a organizar idéias, a mim, privilegiado em minha profissão.
A partir desse momento, portanto, fiz uma opção. Todos esses anos me levaram, durante meu tateamento pessoal, a ler Freinet e, em particular, a Pedagogia do Bom Senso (Les dits de Mathieu), depois, o Ensaio de Psicologia Sensível e A Educação do Trabalho. Não é por acaso que cito essas obras nesta ordem. Parece-me que isso corresponde a tudo que vivi e ao conhecimento que tenho das idéias de Freinet e de sua aplicação à prática pedagógica. Ler A Pedagogia do Bom Senso é entregar-se a uma filosofia da existência que, por parecer simplista aos olhos de alguns, é também, ao menos para mim, uma fonte inesgotável de bom senso. Pois, antes de tudo, e esta é minha posição atual, penso que as idéias de Freinet são, em primeiro lugar, uma vontade de conceber a existência humana de uma outra maneira, numa época em que a realidade dos seres está. tão prejudicada pela máquina, pela facilidade, pela preguiça. É, para mim, reencontrar, de alguma maneira, a própria essência da existência. Como, com efeito, conceber a vida de outra forma que não a de urna busca contínua, de um saber viver, que não tem nenhuma relação com a busca de um saber estéril, que ignora completamente a realidade sensível dos indivíduos? No Princípio, há a vida ("A vida é", diz Freinet), este impulso que cada ser sente em si e que o empurra a fazer-se sem cessar, este impulso de vida que requer tantos esforços, não para se elevar acima dos outros, nesta emulação sórdida que alguns inculcam em seus alunos (na sociedade dos adultos é exatamente a mesma coisa, com tudo o que isso comporta, de compromissos, covardia, egoísmo), mas para conseguir-se ser de maneira serena e completa, participando de maneira real e responsável no "devenir" de toda uma sociedade à qual, por bem, mais do que por mal, a gente pertence, ou melhor, deve pertencer. E isto, malgrado tudo o que a sociedade vá colocar, desde o começo, como barreira enormes, a nível social, por exemplo.
O que me seduziu nas idéias de Freinet foi esta dimensão universal do "devenir" do homem, não mais fixado na sua própria realização somente, mas consciente de sua participação em um conjunto em evolução e, portanto, consciente de sua própria implicação no movimento desta evolução. (Isto pode parecer utopia. Reportemo-nos à característica popular das idéias de Freinet, se você pensa assim.).
Para tanto, deve-se querer conhecer os seres, e o ‘Ensaio da Psicologia Sensível’ (minhas constatações "in vivo" se confirmavam) ajudou-me muito a refletir e a trabalhar. A partir daí, pude lançar sobre o pequenino povo de meus alunos um outro olhar, totalmente diferente daquele que tinha antes, e que não era senão um olhar de jujz, se posso dizer, de "avaliador" (e tudo isso, segundo critérios estabelecidos desde há muito tempo, semelhantes àqueles aos quais me havia submetido).
Com efeito, que me importava a vida profunda de meus alunos? O que me parecia essencial era, de início, sua permeabilidade às minhas propostas, às minhas lições. Minhas conclusões não se fixavam a não ser na franja, na superfície, portanto, de seu intelecto, de sua facilidade de aprender, de sua capacidade de memorizar e de reutilizar o que eu lhes levava, sem me preocupar com seus desejos profundos, sem me preocupar com seus poderes criativos originais. Eu não era aquele que tinha como tarefa a instrução de um grupo de crianças no domínio que me era reservado por meu "status" de professor, mas aquele que se fixava também, e sobretudo, na educação de indivíduos globais, tornados em sua totalidade viva, com tudo o que isso pode supor de aproximação, liberdade, escuta, acolhimento e exigência.
Pois, de fato, tudo muda e as coisas são muito menos simples. Parece-me, hoje, mais fácil não ser senão um fornecedor de saber, que não se preocupa demais com o impacto do que faz, ou que se preocupa apenas com uma franja atenta de seu auditório, que sabe pronto, por suas próprias qualidades de inteligência, para tudo o que for proposto. (Um certo número de mestres não trabalha, com efeito, senão para uma elite, que sabe fazer emergir do conjunto, para a qual todos os esforços de explicação são bons?) Mas, e os outros? Nas idéias de Freinet foi também o que me agradou, esta dimensão popular do saber, que, destinado ao enriquecimento pessoal de cada ser, supõe, ao mesmo tempo, que este enriquecimento não se faça em detrimento da coletividade, mas por ela e para ela, a fim de que cada um desempenhe realmente um papel responsável.
Dizia eu que era mais fácil ser o mestre fornecedor de conhecimentos. É, então, tão difícil ser diferente? Desconfio dos rótulos, e em nome de que vou, então, reivindicá-los? Tomo a precaução de dizer que o que escrevo não compromete senão o espírito de nosso grupo, que quer que cada um mantenha suas próprias iniciativas, respeitando fundamentalmente as idéias mestras. Isso não quer dizer que não existam inúmeras maneiras de ser Freinet (é evidente, já que inúmeros parâmetros influem); é, mais simplesmente, reconhecer que Freinet, ele mesmo, jamais diz "Faça assim, pois é aquilo em que creio e que é bom". Não se trata de cair novamente numa escolástica, que fechará os indivíduos em idéias novas, mas "definidas" e "definitivas", enquanto seu promotor sempre enalteceu a evolução e a posição de que elas estão, por essência, abertas à evolução! Este aspecto de Freinet também me agradou e eu me sentiria mal acomodado com idéias congeladas. Quem detém a verdade? Quando Freinet desapareceu, alguns acreditaram que suas idéias estagnariam ou desapareceriam com ele. A vitalidade da pesquisa no seio do movimento do qual participo prova totalmente o contrário, e felizmente! Seria aberrante constatar que um movimento que fala de evolução, que aceita o questionamento contínuo não aceite para ele mesmo os mesmos princípios!
Sou Freinet, ou não? Isto não vem ao caso! Os rótulos que alguns. nos propõem (ou se propõem) não querem dizer nada. O que sei é que vivo em minhas turmas com meus alunos uma existência na qual tento preservar e promover alguns princípios que Freinet, ele mesmo, definiu: a expressão livre, o desabrochar de responsabilidades, de personalidades, o tateamento experimental, portanto, o direito ao erro, a socialização do trabalho, a responsabilidade. O importante não é somente ter idéias, mas, sobretudo, chegar a colocá-las em prática, ou melhor, mais humilde de dizer: "conseguir vivê-las".
Aí ainda tomo uma precaução. O que vivo não é, de maneira alguma, comparável ao que pode viver um outro de meus colegas na França e, portanto, "a fortiori", um colega do Brasil. O que vivo e o que tento não é em função que de mim mesmo e de condições "técnicas" e "afetivas" que são minhas. (Um estabelecimento pequeno, um diretor partidário de nossas idéias, uma pequena equipe de colegas, pais que escolheram esta pedagogia e que, portanto, participam dela, uma sala para mim, material, etc...). Esta precaução não é, portanto, uma fuga, ela é, ao contrário, a vontade de dizer àqueles que tentam a aventura (pois não passa de uma, no sentido nobre do termo!): atenção, nenhum exemplo é válido, se não se torna a precaução de considerá-lo em função do momento e das condições do terreno, cada um tendo bastante senso comum para adaptar... Direi, como Roberto Ballalai (citando Gide): "Natanael, jogue fora meu livro!" Não quero dizer que o exemplo não seja coisa positiva, eu que usei e abusei de ensinamentos de todos os meus camaradas do ICEM e que recebi estagiários em minhas turmas... Entretanto, gostaria (para terminar com estas "precauções") de fazer uma observação um pouco anedótica: toda vez que, depois de uma conversa, um encontro, uma troca, introduzo em minhas turmas uma técnica, uma ideia que algum dos meus camaradas me tenha proposto, sou mal sucedido, enquanto essa ideia não "pertence" ao meu próprio "tornar-se", ao meu próprio tateamento e ao de meus alunos. Dito isto, sem modéstia inoportuna, volto à minha prática.
Ela é, de início, uma vontade visceral de considerar, antes de mais nada, os alunos como indivíduos inteiros, vivendo com seus corpos inteiros em um desenvolvimento que lhes assalta todos os dias, tanto em seu ser físico, como no psicológico (ou melhor, psíquico). De fato, não quero mais me considerar unicamente um professor de francês encarregado de "fazer aprender" as finezas da língua a seres que a falam correntemente, mas, antes de tudo, um animador, que permite a cada um construir sua própria cultura, ao mesmo tempo em que construirá sua própria personalidade. O tempo de uma aula é muito curto: é necessário ver mais longe e, sobretudo, conceber o homem dentro da criança e, portanto, trabalhar para que ela seja não tal qual eu desejo, mas qual ela deseja ser, a fim de cumprir, frente à sociedade, seu papel de homem (ou de mulher, bem entendido!) responsável, com a vontade, ao mesmo tempo, de viver uma verdadeira vida de ser humano. Isso implica, muito naturalmente, de minha parte, uma atitude que permitirá esta realização pessoal dos seres, preservando sempre o caráter social da vida. Tenho, portanto, de estar à escuta de cada um, mas devo também permitir a todos dizer de si, qualquer que seja sua proposta. Os únicos limites possíveis às idéias são os que o grupo se impõe, os que são estéreis ou ofensivos. Mas aí, nenhuma "regra" particular pode ser ditada; tudo é tão flutuante, tão sensível num grupo!
Mas, se devo ser aquele que vela para que esta mudança, democrática, tenha lugar, não devo me tornar, para tanto, aquele que, dando as cartas, será, de uma parte, o único referente e, de outra parte, ainda o mestre. Não se trataria de uma educação, mas tão simplesmente de um treino de dinâmica de grupo! Devo fazer esforço para não ficar em evidência (o que é difícil), para que o grupo viva por ele mesmo, crie suas próprias regras (não oriundas apenas da minha única vontade), cuidando sempre, e este é meu papel de "barreira", para que um líder não tome o meu lugar para se impor por sua vez. Será inútil esperar que um pequeno grupo de crianças, célula artificial de vida num grupo escolar, adquira este modo de proceder, estas técnicas de vida, em um dia! Toda esta educação da vida em sociedade requer tempo e muita paciência, repetições, espera, ajustes, mas chega-se lá!
Esta socialização da vida ao nível do grupo implica, portanto, a participação efetiva, real, não outorgada, com decisões que concernem toda a vida do grupo e, portanto, o trabalho. Esta organização do trabalho aparecerá de maneira mais prática nas linhas que se seguirão.

As idéias de Freinet são princípios de vida aplicados à educação, como diz muito bem o título de seu livro ‘Ensaio de Psicologia Sensível aplicado à Educação’. Em primeiro lugar, o que me preocupa é, primeiramente, a expressão, e a expressão sob todas as formas. (O fato de ser professor de francês não implica que me restrinja ao ensino do francês, e que não aceite, portanto, o que é puramente considerado domínio da aprendizagem da língua francesa, que quer dizer o saber escrever e o saber dizer).
Parece-me que o importante é ter alguma coisa a dizer, e, mais ainda, poder dizê-Io. E, aí, pouco importam os meios! Nossa sociedade é castradora no que diz respeito ao dizer e à comunicação e, então, devemos tentar restabelecer os circuitos para que os seres possam desabrochar e enriquecer-se autenticamente!
Insisto, portanto, em oferecer a meus alunos, desde que os pego no início do ano, duas coisas essenciais: um clima de acolhimento e proposições de técnicas de expressão variadas.
O clima não é coisa difícil de se criar, mas, sobretudo, uma questão de vontade pessoal, que tende a querer estabelecer uma atmosfera de troca. Primeiramente, entre eles e eu: eu os escuto e os deixo dizer de si. Sei que, em relação a outros modos de agir, já é importante que frequentemente os alunos se surpreendam com este mestre que escuta em vez de falar, de tal forma que eles não ousam dizer nada por instantes e esperam. Mas, quando sentem que esta atitude não é uma tática destinada a lhes prender, então eles falam... muito. Minha sala é sempre um lugar propício (por isso é tão importante trabalhar na mesma sala); por sua natureza, por sua maneira, ela suscita logo perguntas, comentários. Proponho, frequentemente, que vejam o que se encontra na sala que doravante será deles e, no calor das perguntas, a simpatia nasce. Toma-se conhecimento também de "criações" dos anos passados, criações escritas, gráficas, visuais. Não proponho, dessa forma, modelos, mas sugiro pistas, a fim de que cada um sinta que tem possibilidade de viver uma outra coisa que não o ditado semanal, a redação, a recitação imposta, uma vez que a escolha do texto "de autor" fica sendo o apanágio do mestre.
Temos também todo um leque de jogos de desbloqueamento da expressão, seja ao nível escrito, gráfico ou gestual, fichários iniciadores, mas, dos quais deve-se saber que são apenas meios passageiros e não fins, senão, só seriam pequenos brinquedos pedagógicos suplementares!
Desta forma, cria-se um clima distendido, de confiança, quase lúdico, onde o prazer tem seu lugar, e no qual cada um sente que poderá, à sua medida, e em função do que é, viver.
E, ao mesmo tempo, este leque de técnicas possíveis, para assim dizer, permite uma desdramatização desses momentos de reingresso, marcados de ansiedade.
Certamente tudo isso seria gratuito se muito rapidamente não viesse expor esta frágil construção de outras vontades que pouco a pouco vão nascer naturalmente: criar é bom mas, por quê? Para quem? Automaticamente os primeiros receptores serão os membros do próprio grupo aos quais, se for desejável, pode-se, num momento de "trocas", propor o que foi criado. Isso se fará de início, sem idéia de organização, por uma observação, uma troca de idéias entre dois a três alunos. Mostram-se as coisas. Depois, muito rapidamente, porque a curiosidade de uns é importante, já que o número de criações cresce, e porque também a vontade do locutor está em jogo, a troca vai precisar de todo o grupo. E serão momentos privilegiados de expressão e de comunicação.
O leque de técnicas não particulares ao domínio típico do Francês (quero dizer o escrito e o oral) permite o êxito, e este êxito é como um melhoramento de terreno; ele vai abrir a porta a outras tentativas em domínios que não são privilegiados. (Um individuo que recebo não tem necessariamente por meio privilegiado de expressão a palavra ou a escrita tais como eu desejo que se os pratique! Eu penso em particular em todas estas crianças que têm problemas de leitura e de escrita, de ortografia prejudicada e que, portanto, não ousam nem ler, nem escrever, habituados que estão a ser sempre sancionados, em situação de fracasso. Será necessário que eles sejam privados da expressão porque em alguns de seus fracassos eles se autocensuram? Eu sei que, se um dentre eles consegue fazer um bonito desenho, um desenho simplesmente, que ele poderá mostrar aos outros e que os outros saberão acolher, isto será para ele a porta aberta a outras tentativas, entre as quais a da escrita em particular.
Aqueles que têm problemas de ortografia (É uma pergunta que me fazem frequentemente, muito frequentemente, como se ela fosse essencial) e que têm, felizmente, ainda desejo de escrever são acolhidos ao nível do conteúdo de seus textos. Eu dou importância à ortografia, que é uma exigência pessoal, mais do que um critério de inteligência! Eu quero apenas desdramatizar e não perpetuar uma aversão que inculcam em seus alunos professores muito minuciosos. Esta exigência não deve matar a expressão e é por isso que, no início, prefiro uma expressão com erros, a nenhuma expressão! É como se se interditasse a escrita a uma criança enquanto ela não tivesse a boa maneira de desenhar as letras. Estou muito atento, sobretudo, àqueles que são desfavorecidos nesse domínio e sei que, quando um texto que acolho apesar de seu estado "gramatical" pode ser proposto, reconhecido, abro para a criança em questão caminhos de felicidade. A exigência virá pouco a pouco e nossos numerosos fichários auto-corretivos estão lá para ajudar no tateamento. Eles serão usados quando a necessidade se fizer sentir, já que toda técnica toma sentido quando participa de uma necessidade fundamental de expressão.
A abertura para a turma, dentro da confiança, com tudo que ela supõe ao nível da escrita, de sua organização, ao nível da recepção e do resultado, é já um fato importante, pois "dizer-se" frente aos outros não é do domínio do exibicionismo; é uma atitude mais profunda que, finalmente, conduz a uma solicitação de reconhecimento pelos outros, como pessoa, e, no nível de um indivíduo, isto é muito importante.
Certamente isso supõe uma organização no tempo e no espaço, no seu desenrolar, e cada grupo sabe rapidamente encontrar todos os meios de tornar positivos esses momentos tão privilegiados, porque eles são fontes de alegrias, de prazer, de idéias, de conhecimento, de encontros.
Mas logo a turma tem necessidade de um outro eco. Vai, portanto, abrir-se aos outros (ao exterior do contexto escolar local) por dois outros meios: o jornal e a correspondência. Eles não são comparáveis tecnicamente, mas partem da mesma necessidade de ser conhecido, reconhecido, escutado, desejo incompletamente satisfeito se o eco e o retorno não existem; e é dessa forma que a correspondência poderá desempenhar um papel diferente.
O jornal não nasce de maneira espontânea (algumas turmas, alguns anos, não chegaram a imprimir "um jornal"). Numa turma "Freinet" escreve-se, imprime-se, desenha-se, mas tudo isso não é nem gratuito, nem interesseiro. (Eu deveria tomar, mais uma vez, a precaução de dizer, para ser menos confuso: "exprime-se, e para se exprimir é necessário adquirir técnica e saberes, todas estas técnicas estando a serviço de uma expressão que é, ela mesma, motor do desabrochar do indivíduo, portanto criadora de um novo impulso... etc...") E nós estamos longe do behaviorismo.
Todas essas produções escritas, logo que tenham conseguido o eco da turma, podem ser reagrupadas em cadernos, em jornais, que vão levar a vida do grupo para fora, mostrar, em particular aos pais, o que se faz ali, como se vive ali. Para tanto vai se fazer necessária uma organização do trabalho. Mas o jornal não será uma coleção de textos, de ilustrações, ele será também uma criação do grupo; e essa dimensão coletiva tem sua importância!
Esta abertura não é sempre suficiente e é aí que intervém a noção de correspondência: "se se tivesse alguém de um outro lugar com quem fazer permuta! Seria tão legal!" Em geral, em função das turmas que sei que vou ter no ano seguinte, eu me arranjo com colegas que conheço e de quem eu gosto para prever uma antena possível. Mas, se não, a turma lança apelos, que dirijo a pessoas que conheço ou à organização de correspondência do ICEM. Às vezes também recebemos este gênero de pedido. Isso frequentemente é muito bom, mas, frequentemente também, aumenta o número de nossos correspondentes habituais ou estabelecidos e, então, somos obrigados a recusar... o que muito nos embaraça... A correspondência pode ser feita sob múltiplas formas, não há regras que sejam melhores. Trata-se ainda aí de adaptar o meio à necessidade e de ser exigente. Sempre me dei como regra responder ao que recebo; é um mínimo de cortesia (sobretudo quando se considera que toda a correspondência neste nível é um apelo ao qual se deve responder). A correspondência é sentida como uma abertura para outra vivência que não a do grupo, e ela tem, a nível afetivo, um papel muito importante a desempenhar. Com efeito, escrever a alguém que não se conhece no início é uma tarefa delicada. Mas, se nesta tentativa há uma verdadeira vontade de abertura ao outro e de conhecimento, as barreiras da timidez são rapidamente vencidas.
Eu não resisto ao prazer de copiar aqui um pequeno texto de uma de minhas alunas de 5ª série, depois da viagem de permuta:

"Amizade”

Ela me conhecia sem me ter visto.
Ela me amava sem me conhecer.
Eu a conhecia sem a ter visto,
Eu a amava sem a conhecer.
E ontem, eu a vi e gostei dela
ainda mais, era minha correspondente...

                                                              Géraldine

Nem sempre aquilatamos bem, nós, os adultos, qual a importância de tais trocas; esse pequeno poema é uma prova dessa importância. E, entretanto, não se escreve nada, não importa o quê! Mesmo se se fala da chuva ou do bom tempo, mesmo se se dão essas informações um pouco banais, há nas cartas uma outra dimensão, que aparece rapidamente. É o que eu chamaria de troca, troca ao nível de idéias, pelos textos que se enviam, os álbuns, as pesquisas, mas também, e sobretudo, troca ao nível dos seres, por tudo o que se descobre e que se confia de pessoal, quando se assume de verdade essa correspondência (É claro que os fracassos existem e são inevitáveis. Entretanto, mesmo no caso de uma correspondência que não "pega" no nível afetivo, há um nível de troca suficiente para dar a cada um a ideia de que ele existe em relação com outro. Algumas correspondências não dão em nada, por múltiplas razões, mas, sem dúvida alguma, lhes faltam organização e continuidade! Tenho, de minha parte, vivido alguns fracassos dos quais tenho tentado tirar algum ensinamento, sem querer, a todo custo, manter uma relação que eu sinta poder tornar-se muito artificial. Mas, frequentemente, a exigência dos correspondentes nos tem ajudado, obrigando-nos a nos ultrapassar um pouco, forçando-nos a realizar nossas remessas mais belas, mais organizadas, mais densas, mais ricas, melhor apresentadas, melhor escritas. É, com efeito, um pouco severo, mas sempre muito salutar, receber dos correspondentes observações do gênero: "Sua remessa não é muito boa, os textos contêm bastante erros, o trabalho de fulano está mal acabado, vocês não responderam a... etc...". Mas, é evidente que é preciso se esforçar por tomar todas essas críticas positivas, de uma maneira que não fira, mas que incite, ao contrário, ao crescimento das relações. Às vezes as trocas de cartas, de pequenas encomendas contendo gentilezas, conduzem a um encontro entre os grupos, quando as condições técnicas não são muito difíceis. A distância, por exemplo, traz sérias desvantagens. Meus alunos da 5a série que se correspondem atualmente com um colégio no Rio de Janeiro adorariam encontrar seus correspondentes mas, eles sabem que isto não será possível. Estes encontros que se preparam com cuidado (todo o grupo trabalha), tanto ao nível dos meios quanto ao nível do conteúdo, sempre tiveram para mim interesse considerável: pôr em contato dois grupos de crianças que muitas vezes não se conhecem a não ser em fotografia, que são oriundas de meios diferentes é muito rico. É importante, com efeito, penetrar em meios diferentes, atirar-se a outras realidades.
Ao nível afetivo, é também importante e muitas coisas se passam por fora de nós (é totalmente normal); mas sabemos que tudo terá um eco na criança. Estabelecer esta verdadeira comunicação traz prazeres ricos, pois não se trata somente de se encontrar, mas de, em seguida, durante estes momentos, trabalhar juntos, de mostrar o que se preparou, construiu, aquilo de que já se falou nas cartas, e comparar as organizações, as maneiras de fazer, as atitudes, trocar. (Lembro-me de observações amargas, espantadas, de meus alunos, em visita a um CES da região parisiense, quando foram repreendidos de "viva " voz pelo diretor, que os censurava por estarem onde não deveriam estar. Aquele lugar lhes era proibido, portanto,... Em nosso colégio, malgrado as regras de vida, não temos essas proibições, donde a surpresa para meus alunos, que não compreendiam nem o porquê da coisa, nem a maneira pela qual as coisas haviam sido ditas. Com efeito, ao fim de algum tempo, o hábito da responsabilidade dá a nossos alunos urna atitude correspondente que se deve saber aceitar e reconhecer). De qualquer modo, o recebimento de uma encomenda em classe é sempre um momento de alegria intensa, e devemos estar atentos para que cada um tenha a sua carta, mesmo, naturalmente, o professor. (Esta correspondência entre adultos de uma mesma turma de crianças que se correspondem é importante, porque ela é, de início, necessária às adaptações, à determinação de problemas, e também porque ela ajuda à não desligar o professor do grupo. Ele "participa " também da correspondência, como de todas as outras atividades.)
É preciso, agora, ainda que eu não haja esgotado todas as facetas da prática pedagógica, abordar todos os problemas advindos de tudo o que acabo de dizer, uns após outros, como, aliás, os abordei em meu próprio tateamento. Porque insisto e creio que é essencial: nós propomos a nossos alunos um processo de aprendizagem que se apóia na teoria do tateamento experimental, que Freinet definiu no Ensino de urna Psicologia Sensível; mas é essencial que o mestre possa beneficiar-se deste tateamento para criar o seu próprio ambiente pedagógico (essa é a razão de nossos estágios, de nossos grupos de trabalho nos departamentos (municípios), essa é a razão de nossa organização agrupada sob a sigla ICEM).
As proposições que abordarei agora são de duas ordens:
- num primeiro tempo, as implicações tecnológicas necessárias à aplicação desta Pedagogia;
- num segundo tempo, as implicações humanas, sociais e políticas.
E, bem entendido, continuo a falar de meu próprio tateamento, de minha própria vivência.
A execução desta Pedagogia do Êxito, permitindo as aprendizagens pelo tateamento experimental (não se trata apenas de conhecimentos exigidos pelo programa oficial, porém, mais amplamente, de tudo o que diz respeito à vida social e coletiva), permitindo a comunicação, permitindo uma socialização do trabalho, ao que achamos uma verdadeira educação do trabalho, tudo isso, requer uma organização bastante escalonada, complexa é verdade, mas que se constrói pouco a pouco, à medida que o grupo (o mestre também) aperfeiçoa sua própria transformação, procurando novas vias de expressão. Há, portanto, a organização da vida da turma, a princípio em seu ritmo e, em seguida, a nível material e espacial. Relato aqui minha própria tentativa e minhas condições atuais, o que significa, repito-me, que cada um tem, em função do que vive, que construir para si sua própria tentativa no ritmo de suas necessidades e também de seus meios.
Creio que se deva ser bastante prudente e tomar consciência de que tudo é uma questão de tempo. Lançar numa turma uma estrutura, uma atividade que não é sentida como necessidade leva frequentemente ao fracasso. Tenho feito muitas vezes a experiência. E não me cansarei de dizer às pessoas que vêm me ver ou que encontro nos estágios que sejam prudentes, que sigam seu próprio ritmo, que não tenham em mente a vontade de reproduzir um modelo, que considerem que aquilo que observam é um momento do meu caminho e do caminho dos meus pequenos, que se deve, portanto, situar a coisa desta maneira, e não fazer delas um ponto de partida.
Portanto, comecei, pouco a pouco, a construir a organização do trabalho que, de maneira normal, naturalmente (convém insistir neste termo), provém desta vontade de expressão e de comunicação. De início, organizar o tempo de trabalho e prever as atividades: é o plano de trabalho que a gente concebe como a gente sente e, sobretudo, tendo em vista fazer deste plano um verdadeiro instrumento. Há também toda uma organização individual que se esgalha sobre esta organização coletiva, que é "construída" em comum durante a reunião da cooperativa, momento privilegiado onde se debatem todos os problemas da vida do grupo, incluindo necessariamente os problemas de trabalho. O plano de trabalho é um instrumento de organização que deve ser eficaz, prático e que deve corresponder verdadeiramente a um compromisso de trabalho. (Neste plano de trabalho permite-se a todos encontrar aquilo de que têm necessidade em função de seu trabalho pessoal e em função de seus contatos com o grupo. Haverá, portanto, momentos de trabalho individual e momentos de trabalho coletivo: em função das necessidades que venham a nascer. Este plano não é imitável e não será fixado de uma vez por todas).
Convém insistir nesta socialização da organização do trabalho para "enxergar" um pouco mais na frente do momento escolar, e dar, desde já, às crianças, o senso da responsabilidade e o senso da iniciativa, de que terão tanta necessidade em sua vida de homens. Trata-se, para nós, de adquirir técnicas de vida que conduzirão o indivíduo ao mais completo poder de todo seu potencial de vida.
Esta organização do trabalho não é somente, portanto, funcional: ela é profundamente vital. A organização não é, tampouco, somente coletiva; ela é também individual, no sentido em que me esforço por levar meus alunos a uma repartição correta de seu esforço, para evitar justamente os erros e as tensões. Eles mesmos planejam o que têm de fazer para que possam fazer tudo nas melhores condições e, tudo trabalhando assim, viver verdadeiramente. Devo dizer também que dou muita importância à noção de prazer no trabalho, prazer que não significa facilidade mas esforço, mesmo quando ele é querido e dosado com realismo. Esta educação do trabalho é, ao mesmo tempo, educação da personalidade.
Toda esta pedagogia supõe (ainda que se individualizem, o mais possível, o trabalho, a pesquisa, portanto, o tateamento) esforços particulares no que diz respeito, inicialmente, ao material (a que chamamos nossos instrumentos) e, em seguida, ao espaço e ao lugar de trabalho.
Os instrumentos de aprendizagem devem, portanto, poder permitir que cada um trabalhe em seu ritmo, que se auto-corrija, e que também se auto-avalie. É o papel de todos os nossos fichários auto-corretivos, que em minha classe estão à disposição constante e imediata dos alunos, seja como resposta imediata, seja como aprofundamento. Estes instrumentos estão adaptados a nossos alunos, pois têm a imensa vantagem de serem elaborados por nós com eles durante muitas aulas, dirigindo-se, pois, a seu nível de pesquisa e respeitando suas preocupações. São criados por nós e realizados pela Cooperativa de Ensino Leigo, fundada por Freinet, Cooperativa gerida por todo nosso grupo: é a CEL, sem a qual não saberíamos viver e que temos a todo custo que defender dos ataques dos grandes editores.
Procuro também propor a mais ampla documentação possível, entre a qual encontram-se as publicações da CEL que têm o nome de BT (biblioteca de trabalho), BT2, etc... Elas podem, naturalmente, ser usadas à vontade, respeitando-se as regras elementares do saber viver, que se aplicam ao uso do bem comum. Aliás, surpreendo-me frequentemente ao constatar o respeito que os alunos têm por todo este material, que todo o mundo consulta sem parar. Certamente é preciso, de tempo em tempo, soltar um grito de alarme para manifestar inquietação diante da desordem de um fichário. O que é bom é que não sou o único a fazê-lo, e isso se acerta durante a reunião da Cooperativa!
Esta forma de trabalho, que tende à individualização das aprendizagens, pelo respeito essencial, a meu ver, ao ritmo de cada um, implica, por ela própria, tanto numa ajuda mútua dos alunos entre si como numa parte constante do mestre.
Minha disponibilidade deve ser plena e inteira durante os momentos de aula e, frequentemente, além dela. (Se bem que se tem que respeitar também um certo saber viver, que reconhece que eu tenho necessidade de momentos de descanso do trabalho, digamos, de calma, e isso se faz rapidamente, à medida em que as relações são amigáveis). Minha parte situa-se em dois níveis dificilmente "separáveis": uma parte afetiva e uma parte técnica. Meu papel (tal como concebo e que me esforço por desempenhar) é o de incitar, de seguir, de acolher, de reter, às vezes, tudo isso com uma dosagem tão particular que ninguém pode imaginar uma regra, já que as coisas se fazem em função das condições da vivência do momento e dos indivíduos. É certo que não abordo todos os alunos da mesma maneira, mas isto é tão simples de compreender que não me estenderei a respeito. Apenas dou muito valor à escuta, ao acolhimento; é, creio eu, disto que as crianças, os adolescentes, e sei que também os adultos, têm mais necessidade. Eles têm essencialmente necessidade de serem reconhecidos e é isto que lhes devemos antes de tudo, se desejamos ter conosco seres verdadeiros, que irão tão longe quanto puderem em sua busca de si mesmos e em sua investigação do meio no qual evoluem, para conhecê-lo, compreendê-lo, dominá-lo e construir uma existência de dignidade e de riqueza pessoal, e, quando menos, de vida verdadeira, de alegria.
Vale dizer que me bato frequentemente contra os egoísmos que nossa sociedade sabe formar tão bem, todos esses opressores latentes que, desde que saiam de sua condição de oprimidos, tornando-se garantidos, são automaticamente levados a desempenhar o papel que combatiam antes. Esta divisão não é tão afirmativa quanto acabo de escrever, mas a tentação do egoísmo é grande. Mas, trata-se de educar, e quando falo de combate é simplesmente porque ponho nisso a paixão, mas jamais o ódio. A turma, com o passar dos dias, adquire coesão, tanto ao nível de sua organização, como ao nível das relações afetivas, o que conduz a uma certa harmonia.
Isto, naturalmente, não exclui os conflitos, as tensões, mas, quando esses momentos nascem (o que parece normal na vida de um grupo), são em geral assumidos por todo o grupo e nós os enfrentamos, assim como enfrentamos outros problemas. E seria erro, penso eu, dizer que tudo se passa em uma reforma, pois nós nos esforçamos o mais possível para nos abrirmos para o exterior, a fim de compararmos nossas idéias e encontrarmos novas idéias junto a outros, a fim de aperfeiçoarmos as nossas.
Quando, por exemplo, debates apaixonados nascem a propósito de um texto livre lido em urna permuta, não nos contentamos em debatê-lo entre nós. Vamos logo, ao nível de nossa documentação de classe, procurar o que outros autores disseram ou propuseram àquele respeito. Depois procuramos outras referências, em outros autores, por outras fontes, donde a correspondência. O que faz com que tudo o que se passa de importante no grupo, mesmo se é um problema do grupo, tenha sua abertura para o exterior. A meu ver, o hábito de abertura do espírito, de pesquisa e de estabelecimento de um espírito crítico é que pode, pouco a pouco, pôr termo às idéias prontas, aos preconceitos etc...
Dizer que isto é fácil e se realiza em um dia é, sem dúvida, mentir. Mas quero dizer que essa vontade de acolhimento que tenho incita aqueles com quem vivo a tê-la também, tanto frente aos seres tais quais eles são, como frente às suas idéias.
Creio que isto é, ainda em nossa época, uma coisa natural!
É necessária, portanto, para que tudo isso viva e funcione (estes dois termos são importantes, pois se nos mantivermos no funcional passaremos por cima do essencial), uma organização espacial do lugar de vida. Tenho a sorte, até agora, de poder dispor do meu local, onde os 'alunos vêm trabalhar, o que faz com que se torne local de trabalho deles também. E essa sala de aula se organiza bem naturalmente (o que não quer dizer bem facilmente!), para que possamos viver e trabalhar, o que subentende que sua arquitetura interior não é jamais definitiva; que ela se transforma, que ela evolui em função das necessidades. E isso é formidável. Numa sala comum encontram-se em geral quatro cantos e o eixo da sala é inevitavelmente dirigido para o mestre e para o quadro. Na minha (e nas de muitos de meus colegas que conseguiram essa conquista essencial), há apenas cantos e nenhum está ali por acaso. É necessário conceber que múltiplas atividades podem se desenrolar durante o mesmo momento de aula e, sobretudo, simultaneamente: o trabalho pessoal de explicação, uma montagem de diapositivos para ilustrar um texto, a ilustração de uma página do jornal, a composição de um texto na "impressora", a tiragem do jornal, a oficina de correspondência, uma preparação de exposição, de leitura, de pesquisa, de documentação, etc... É bem difícil fazer uma lista exaustiva. O que é importante é poder realizar tudo isso no momento em que é necessário e, portanto, a sala de aula é arrumada em função de todas essas necessidades possíveis e evolui em função delas. É evidente que tudo o que se torna inútil ou ineficaz muda rapidamente, e não temos lugares suficientes para nos permitir desperdiçar espaço.
Mas quero também que este lugar seja um lugar de vida e que seja, portanto, nossa tarefa, de todos; e que as crianças assumam sua organização e sua manutenção; que eles pensem no trabalho das mulheres que fazem a limpeza toda noite. Ainda aqui, é uma questão de exigência e sei que se consegue e, apesar de todo o material amontoado em nossas salas, é característico constatar que não temos que temer o vandalismo que se encontra tão frequentemente em outros lugares.
Isto não exclui os erros, certamente, mas aí ainda eles são assumidos pelo grupo e nós os remediamos juntos. O direito ao erro parece-me ser um direito fundamental no processo educativo que escolhi. Mas não é sempre fácil fazer compreender a alguns colegas que sanção não é mais que satisfação superficial, que ela não resolve a crise, apenas a guarda ou a recolhe. No contato social de nossos alunos no seio do estabelecimento temos, às vezes, que regular os conflitos para os quais a solução não tem jamais o mesmo sabor, sobretudo quando se trata de pessoas que não pensam em repressão.
Todas essas organizações são absolutamente vitais, mas aí ainda é necessário insistir no processo de tateamento. Não se faz tudo em um dia apenas e, sobretudo, toda a organização supõe uma necessidade. Disse-o mais acima, tenho constantemente observado, que uma forma de organização vista em algum outro lugar e introduzida em minha sala não dá de uma só vez o resultado que se espera; normalmente fracassa. Cada classe tem sua própria vida, suas próprias exigências, tudo o que é instalado, organizado, depende das necessidades que nascem. Certamente meu papel é o de suscitar o mais possível, de ajudar. Mas agora evito agir sozinho de maneira autoritária; sugiro, quando sinto que uma situação está madura, a fim de que a reflexão do grupo passe pelo caminho necessário à realização. !1, para mim, estou constatando agora, uma garantia de êxito e de eficácia. Tento, com efeito, não me sentir, apesar de minha posição de adulto que reivindico inteira- mente, como aquele que deve decidir. E é uma atitude que não é sem- pre fácil de ter, sobretudo nos momentos de crise!
Isso me leva a abordar o lado social e "político" (no sentido lato do termo) de nossa ação com a turma.
No início, uma turma é um ajustamento artificial de indivíduos, num lugar artificial, durante períodos de vida bem definidos pelos horários (tal é a situação, certamente, com a qual é necessário viver, sem- pre procurando fazê-la evoluir). 1, necessário conseguir estabelecer nesse grupo, que não é, no início, mais que uma reunião de individualidades, uma vida, uma coesão, que tende a uma harmonia, não pela arte ou pelo prazer, mas porque ela vai permitir , creio eu, a cada um desabrochar ao máximo, sempre conservando sua própria natureza. Pois não se trata de chegar a elementos neutros e obedientes, normalizados, mas a seres inteiros, vivendo suas contradições, seus esforços, suas alegrias, seus entusiasmos, suas penas, em plena possessão de si mesmos.
As dificuldades que a vida impõe devem ser construtivas para o indivíduo. É assim que me esforço para viver e isso não é sem- pre claro. Há, a meu ver, educação do trabalho, educação da personalidade, conservando o caráter social desta educação, pelo contato necessário com o outro, tanto pelas obrigações que se têm para com esse outro..., como pelos serviços que se pode esperar. Educação da responsabilidade também através de todo esse engajamento que exigimos das pessoas, tanto em relação a eles mesmos quanto em relação ao grupo ao qual eles pertencem, e que exigirá deles, a este nível, um real esforço. Estou inteiramente convencido e consciente do esforço que exigimos de nossos alunos. Mas persuado-me também do fato de que, em um contexto de servilidade, a exigência vem do exterior e é sofrida, enquanto que em nosso sistema de trabalho ela acaba por vir do próprio indivíduo.
A tentativa é bem mais difícil e requer muito tempo, muita paciência, muita boa vontade, e indulgência às vezes, mas ela tem, a meus olhos, um outro valor!
Esta educação da responsabilidade ao longo dos anos escolares não é senão uma abordagem do que desejo para meus alunos, quando eles tiverem que desempenhar seu papel de adulto. Quero trabalhar para o homem, a mulher, que serão na sociedade. e isto o que me importa. Aliás, alguns de nossos alunos, quando voltam para nos ver (às vezes muito tempo depois), falam de seu engajamento ou político ou sindi- cal. Eles adquiriram técnicas de vida que ultrapassam o âmbito da es- cola; e que utilizam em sua vida de adultos. Quando sei disto, sinto prazer.
Viver em comum supõe o respeito, o acolhimento ao outro, a aceitação das diferenças, o reconhecimento do direito à diferença, que é tolerância  amor. É para esse lado que tende a minha ação e tudo isso é um trabalho de longo alento, mas creio nele. A esta "construção" de um homem responsável e autônomo creio que chegaremos, justamente pelos modos de vida de nossas classes. E creio que a sociedade se beneficia com estes seres, que nos deixam seguros, pois são ricos de idéias, de reações, de proposições, de acolhimento, de escuta, seres prontos a viver intensamente, a agir sobre suas condições de vida e sobre as condições gerais de vida, num esforço de verdadeiro altruísmo. Mas não são seres fáceis, maleáveis, que aceitam sem dificuldade. E deve-se saber aceitar seu senso crítico, sua arte de questionar. Eles podem incomodar.
Chego ao fim desta carta e sei que não disse tudo sobre meu caminho, sobre meu tateamento, de tal forma tudo é tão complexo, tão rico. Mas o que sei é que minha própria busca não pode ser um mode- lo. E acredito que está longe de estar terminada e que, se eu puder um pouco levar alguma coisa a alguém, descubro, eu também, nesse encontro, muitos enriquecimentos pessoais. É o que me agrada no espírito do que Freinet escreveu. É que nada é estático e parado, nem institucionalizado, como em outras práticas pedagógicas. Tudo está sempre em devolução, como a vida; e nós estamos a serviço da vida.

Caen, maio de 1981

Michel Vibert.



CENTRO EDUCACIONAL DE NITERÓI / SERVIÇO CULTURAL DO CONSULADO DA FRANÇA NO RIO DE JANEIRO / FUNDAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO  - FUBRAE - , Série Cooperação Técnica n°3 – 1981.